História pausterizada
(trecho de Pequenas Maravilhas: Como os micróbios governam o mundo, de Idan Ben-Barak, Zahar. Ilustração de Nicolas Nemiri )
"No romance histórico Xógum, de James Clavell, ambientado no
Japão de quatro séculos atrás, há uma cena memorável em que o navegante inglês
John Blackthorne, recém-chegado ao país, é convocado pelo soberano japonês
Toranaga e submetido a um longo interrogatório. Em certo momento, Blackthorne
fala a Toronaga da política europeia contemporânea: a Holanda, que
anteriormente era um Estado vassalo do rei espanhol, rebelou-se e está em
guerra com a Espanha. O governador feudal nipônico, governante de uma sociedade
estritamente hierárquica, fica furioso – uma rebelião contra um rei legítimo é
inaceitável. Blackthorne, que corre grande risco de ter a cabeça decepada nesse
ponto, diz “Mas havia circunstância amenizadoras.” Ainda assim, Toronaga não
quer saber: “Não existem `circunstâncias amenizadoras` quando se trata de uma
rebelião contra um soberano”, exclama, e Blackthorne responde: “A menos que a
rebelião vença.”
É um momento tenso: Blackthorne certamente morrerá por sua
intolerável insolência e as demais mil e tantas páginas terão de ser deixadas
em branco. Mas não. Toranaga ri e responde: “O senhor citou a única
circunstância amenizadora.”
Do Japão fictício passamos à França real da década de 1860,
quando irrompeu uma batalha furiosa entre cientistas, acompanhada de perto pelo
público em geral (ou, ao menos pelas classes mais altas, que já são um público
suficiente para nossas necessidades presentes). De um lado estavam os que
defendiam a teoria da geração espontânea, segundo a qual os microrganismos são
criados regularmente a partir da matéria orgânica em decomposição. Do outro
estavam os que afirmavam que a vida só surge a partir da vida – o principal
deles era o grande Louis Pasteur, o homem cujas conquistas lhe valeram,
merecidamente, o título de “pai da microbiologia”, ao lado de Robert Koch.
Pasteur havia preparado soluções esterilizadas de leveduras
em frascos de vidro cujos pescoços estavam dobrados de tal maneira que os
microrganismos não poderiam entrar, como ele afirmou corretamente.
Qualquer forma de vida encontrada ali deveria ter sido
gerada espontaneamente a partir da matéria orgânica morta, alegava Pasteur. A
geração espontânea, é claro, não ocorreu: nos frascos do tipo “pescoço de
ganso” de Pasteur não cresceu nenhum mofo por longos períodos de tempo. Essas
demonstrações, características das habilidades técnicas e da lógica poderosa do
virtuose Pasteur, praticamente encerraram o debate.
Digo praticamente porque nesse momento surgiu em cena Felix
Pouchet, o principal rival de Pasteur, que preparou um frasco semelhante, mas
com uma infusão de feno esterilizada ao calor, em vez de uma solução de
levedura na água. O mofo surgiu imediatamente. Pouchet podia agora argumentar
que o experimento de Pasteur provava apenas que a geração espontânea não
poderia ocorrer no caso muito específico da levedura em água. Havia ali
evidências concretas bastante problemáticas para Pasteur. Isto também pode ser
inquietante para você: como é possível que a vida tenha surgido de repente em
um recipiente estéril? “Estéril” não significa que não há nada vivo ali dentro?
Então, de onde veio o mofo?
A resposta, como sabemos hoje, é que a infusão de feno de
Pouchet não era estéril: a técnica de esterilização pelo calor que todos usavam
na época, chamada atualmente de pasteurização, era adequada para eliminar a
maior parte das espécies de micróbios, mas ninguém sabia que certas espécies
podem gerar esporos – envoltórios externos resistentes que protegem o micróbio
de condições adversas, sendo capazes de suportar temperaturas muito elevadas.
Esses micróbios que sobrevivem ao processo de pasteurização podem, uma vez
terminada a esterilização, livrar-se de sua camada protetora externa, tornar-se
ativos e se multiplicar. Eles se banqueteiam na lactose do leite e excretam
ácido láctico que é azedo; por isso que o leite pasteurizado fica azedo depois
de mais ou menos uma semana, mesmo na geladeira. Para preparar leite estéril,
inteiramente livre de esporos (do tipo que chamamos “longa vida”), é necessário
um tratamento mais rigoroso.
Voltemos então a Pasteur, que não sabia da existência dos
esporos. O que ele poderia fazer ante esse desafio à sua posição? A atitude
cientificamente correta teria sido tentar replicar o experimento e então
encontrar nele alguma falha técnica (como ele conseguira fazer com tentativas
prévias de Pouchet) ou propor alguma explicação teórica para os resultados do
rival, que poderia então ser testada (sugerindo talvez a existência de
micróbios resistentes ao calor, que foram de fato responsáveis pelo resultado,
ou alguma outra razão possível). Se tudo isso falhasse, ele poderia desistir e
admitir a derrota.
Mas Pasteur não seguiu nenhum dos três caminhos. Em vez
disso, ele ignorou inteiramente os resultados de Pouchet. Para tal, apoiou-se
na opinião pública favorável e em suas convicções privadas. Pasteur, que era
católico, opunha-se fortemente a qualquer ideia que tivesse algum cheiro de
ateísmo, inclusive as novas terias de Darwin, que sopravam do outro lado do
canal da Mancha. Sendo um conservador religioso, ele defendia a ideia de que a
vida só havia sido criada uma vez – pelo Criador, no início dos tempos, como
descrito nas escrituras – e portanto não continuaria a surgir diariamente. A
atitude de Pasteur se encaixava muito bem no clima político francês da época,
por isso ele não sofreu grandes pressões e pôde simplesmente dar de ombros a
seus oponentes.
Pouchet, que também era um homem pio e baseava suas teorias
em questões religiosas (bastante elaboradas, reconheço), foi deixada de lado.
Pasteur venceu o debate e seguiu em frente, conquistando outros triunfos
científicos. Sua vitória, nesse caso, não se deveu ao fato de ser um cientista
exemplar; apoiou-se fortemente em circunstâncias públicas favoráveis e em suas
noções preconcebidas.
Há duas questões nesse episódio que, para mim, são bastante
bastante desconcertantes, e também esclarecedoras: uma delas é científica;
outra, histórica.
A questão científica é que Pasteur não foi inteiramente
profissional em sua conduta. Geralmente, temos a tendência de enxergar os
grandes cientistas como a encarnação do espírito da ciência – observadores imparciais
da natureza que seguem suas observações para onde quer que os levem. Isto não
passa de uma imagem ideal e, dessa forma, é algo dificilmente personificado por
homens de carne e osso. Um cientista,
até mesmo um dos grandes, é um ser humano, com todas as falhas e falácias
humanas que isso implica. Além disso, homens visionários tendem a ser muito
obstinados, a ponto de se tornarem cabeças-duras. Eles possuem intuições e
convicções, além de seu orgulho. Se Pasteur admitisse, depois de tanto tempo e
esforço, que seus rivais poderiam ter estado certos, isso não apenas iria
contra sua concepção da natureza, como seria um golpe bastante forte em seu
ego, que não era nada insignificante.
No fim das contas, provou-se que Pasteur estava certo. E
isso não se deveu a seus próprios experimentos, mas aos de pesquisadores
futuros que seguiram seus passos. É uma estranha maneira de proceder, quando
paramos para pensar no assunto, mas é assim que a ciência funciona. Ela dá
resultado porque os que seguem por um caminho não o fazem cegamente, eles
verificam e reverificam as ideias que recebem de seus predecessores,
descartando então as que são vistas como imprecisas. Pasteur defendia a ideia
de que a vida surge da vida. Ele estava certo. Esse é o veredicto da ciência.
Assim como no caso do vassalo rebelde, essa é uma circunstância amenizadora.
A questão histórica é que Pasteur, um grande cientista,
opunha-se às ideias evolutivas de Darwin e lutava do lado do conservadorismo
religioso. É uma boa lição a ser absorvida – que os cientistas às noções e
alinhamentos das gerações futuras. Eles trabalham com o conhecimento, o
entendimento e os meios técnicos que têm às noções e alinhamentos das gerações
futuras. Eles trabalham com o conhecimento, o entendimento e os meios técnicos
que têm à disposição, e também são, em grande medida, influenciados pela
sociedade. Não devemos lhes atribuir erroneamente nossas próprias visões de
mundo, por maior que tenha sido o papel que eles desempenharam em cimentar
essas mesmas visões.
O veredicto da história é complicado. Como devemos julgar um
homem que não teve um comportamento profissional, mas que estava acidentalmente
certo? Devemos enaltece-lo por seus instintos, ficar decepcionados pelo modo
como levou vantagem ou apenas nos contentar com o fato de que, ao menos desta
vez, a verdade venceu (ainda que por métodos estranhos)?
Você decide. Do meu lado, eu me pergunto o que Pasteur teria
pensado de tudo o que sabemos hoje sobre a vida e os microrganismos. Ele teria
ficado contente e fascinado, ou chateado com as conclusões modernas,
abertamente seculares, a que chegamos com base em seus achados? Xógum, se posso
voltar a ele, é um livro repleto de homens fortes. De fato, James Clavell
parece ser da escola de pensamento que diz que os homens fortes fazem a
história[3].
Vendo Pasteur, eu talvez acrescentaria que, se é isso que homens fortes fazem, a
história que eles produzem raramente é a história que pensaram estar
produzindo."
[3] A
escola oposta diz que todos os homens são engrenagens inconscientes da marcha
inevitável da história.
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