Justiças
"Quando ainda era um jovem professor, quando a guerra estava
começando para valer, Rey usou seu velho pseudônimo para publicar um ensaio num
dos jornais mais sectários da cidade. O comitê central tinha decidido que o
risco valia a pena: uma provocação calculada. Apesar da pouca circulação do
jornal, o ensaio causou uma certa controvérsia. Numa série de artigos, Rey
descrevia um ritual que tinha testemunhado na selva. Ele chamou o ritual de tadek, que era o nome da planta
psicotrópica usada, embora ele afirmasse que os nativos da aldeia tinham mais
de meia dúzia de nomes para ele, dependendo da época do ano em que fosse
realizado, do dia da semana, do crime que ele serviria para punir, et cetera. Tadek, segundo a descrição de
Rey, era uma forma rudimentar de justiça e funcionava assim: diante de um
roubo, por exemplo, os anciãos da aldeia escolhiam um menino com menos de dez
anos, drogavam-no com um chá muito forte e deixavam a criança embriagada
encontrar o culpado. Rey tinha testemunhado isso: um menino cambaleando bêbado
pelos caminhos enlameados de uma aldeia, entrando no mercado, sentindo-se
atraído pela cor da camisa de um homem, pelos padrões geométricos do vestido de
uma mulher ou por um cheiro ou sensação que só o menino, naquele estado
alterado, podia identificar. A criança se dirigia a um adulto e isso era o
bastante. Os anciões anunciavam que o tadek
estava terminado e levavam embora o criminoso para cortar fora as mãos dele ou
dela.
Se o artigo de Rey tivesse sido meramente uma descrição de
um ritual raramente praticado, as coisas poderiam ter terminado por aí. Esta
parte não era polêmica, uma vez que os lugares da selva, naquela época, eram
conhecidos principalmente por serem desconhecidos, e um leigo não se
surpreenderia com um rito pagão violento vindo da floresta tenebrosa. Mas Rey
foi mais longe. Tadek, ele
argumentou, era algo quase em extinção, mas agora sofria uma espécie de
renascimento. Além disso, ele se recusou a condená-lo, a chama-lo de rito
bárbaro e não deu nenhuma conotação pejorativa à descrição de sua crueldade. Tadek, na visão de Rey, era o precursor
do sistema de justiça inteiramente moderno que vinha sendo empregado na nação.
Justiça de guerra, justiça arbitrária, ele argumentou, era válida tanto ética
(ninguém podia saber quais os crimes no coração e na mente dos homens)
quanto pragmaticamente (castigo rápido, violento, mesmo que de natureza
fortuita, podia apoiar a causa da paz, amedrontando subversivos potenciais
antes que estes atacassem). Numa prosa equilibrada, ele aplaudia alguns poucos
casos conhecidos de líderes sindicais torturados e do desaparecimento de
estudantes como versões contemporâneas, bem-sucedidas, do tadek, nos quais o estado com base em indicadores externos
(juventude, ocupação, classe social), nem mais nem menos reveladores do que o
padrão geométrico de um vestido de mulher. A criança bêbada era talvez
extrínseca num contexto moderno, mas a essência era a mesma. A presença do tadek da selva não era o vestígio de uma
tradição moribunda e sim uma reinterpretação da justiça contemporânea pelo
prisma do folclore. O Estado-nação, em tempos de guerra, tinha finalmente
conseguido infiltrar-se nas massas isoladas: condená-las agora por recriar
nossas instituições em suas próprias comunidades era nada menos que hipocrisia."
(Extraído de Rádio Cidade Perdida, Daniel Alarcón (Rocco). Imagem do PocketComics de Isabella Amaral)
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