sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
amigo visita
...Quem?
Aqui?
Não, acho que o senhor se enganou de endereço. Este número não existe.
Derrubaram uma casa logo ali adiante, foi para colocar o alicerce daquele viaduto. Mas faz anos, eu era menina.
Pra onde ele foi? Acho que voltou pro Nordeste. Ou ganhou na Mega-Sena ou foi preso.
Sei lá, tem diferença?
Não tenho endereço não. Agora, o senhor me dá licença que tô ocupada."
Fecha a porta. Lá em cima do viaduto passa sirene.
O homem coça a cabeça. Lê o endereço. Confirma os números. Olha pra lá, olha pra cá... e nada parece com as lembranças que tinha do lugar. O viaduto sustentado por alicerces delgados como girafas. Onde antes havia árvores estão postes de iluminação. Uma quadra de casas geminadas deu origem a uma fábrica abandonada. Os jardins viraram recantos de entulhos e cacos de azulejo. O campo de bater bola agora virou catedral dos crentes. Ele sabe que são lembranças reais e não de um sonho: o que diferencia uma da outra é uma certeza fina, tênue, resistente como uma teia de aranha. E é só por conta desta certeza que ele caminha até o alicerce do viaduto. Uma parede milagrosamente limpa de grafiteiros e pichadores. Até agora.
Escreve sua mensagem ao amigo. É breve. Descreve como está a vida, como andam os filhos, os dias tediosos do trampo, o último filme a que assistiu. Pensou em deixar email, número de celular. Mas não sabe se haveria conversa para tanto. Depois vai embora sabendo que logo o temporal de verão vai apagar o giz.
(Foto minha de um Grafite na Liberdade. Quem é? Não sei)
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A estupefação pelo receio de ter sido traído pela memória, e o medo do esquecimento. Lindo. Me fez lembrar do filme "Hiroshima, mon amour".
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