sexta-feira, 23 de outubro de 2009

fábula dos Lobos







O fogo na lareira se acendeu em um fulgor alaranjado quando a pequena pilha vermelha de roupas infantis alimentou seu corpo impalpável. A menina nua subiu na cama rangente da parenta e deitou-se sob a coberta puída da velha para escutar a voz esganiçada narrar:

-Quando a primeira Chapeuzinho caiu naquele túnel estreito e carmim dentro da boca do Lobo ela tentou se agarrar nas reentrâncias dos tecidos que recobrem o poço vertical até o estômago, mas foi tudo em vão, ela caiu, caiu, e teria se dissolvido no ácido daquele lago se não fosse um outro menino devorado anteriormente. Ele fizera uma jangada com ossos não digeridos, pedaços roídos do couro de botas velhas, os pregos destas solas, dentes de ouro, a madeira das próteses, o conteúdo de bolsas amarradas junto ao corpo ou enfiadas no rabo dos viajantes covardes que temiam mais os ladrões que os Lobos. De tudo isto fez uma embarcação com a qual salvou Chapeuzinho. Ele a levou para um promontório onde outros sobreviventes se reuniam em uma favela miserável, iluminada pelos gases intestinais recolhidos por lanternas espetadas em varas pelo chão. Eram muitos e eram homens e mulheres e sobreviviam como parasitas daquilo engolido pelo Lobo que nunca alcançava satisfação, as costelas aparentes sob a pele e o pelo. O tempo passou e eles ali construíram uma cidade sobre palafitas de material indigesto, com enormes redes tecidas de fios de cabelo com os quais colhiam a chuva de gente e carne mastigada cadentes do olho negro daquele céu escuro. Assim recebemos as sementes e plantávamos árvores e pomares que aprenderam a crescer na treva, as raízes acostumaram-se a beber dos sucos gástricos e do sangue, os frutos fosforesciam para atrair os pirilampos polinizadores. Ali os primeiros habitantes envelheceram para antes de morrer, terem filhos, e seus filhos tiveram outros filhos, até chegarmos a nós duas, eu e você neste quarto no meio deste bosque. Saiba, minha neta querida e apetitosa, dizem que um dia virá um caçador, ele romperá com seu machado a derme e a carne deste monstro que nos rodeia e veremos um cometa rasgar o céu desta noite, trazendo uma luz tão forte que nos cegará e neste dia sairemos da barriga de nosso hospedeiro velho e quase morto e saberemos então o que é o frescor e o que é o frio. Neste dia finalmente seremos livres para procurar um novo Lobo para viver.










(editado em 31.10, para "limpeza"...)

4 comentários:

  1. Uhu, e o rapaz ainda desenha. É talento demais!

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  2. ...São seus olhos...

    Recomendo um oftalmo.

    Grazzie

    Bjk

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  3. Esta imagem (Sibling Rivalry (Lovebites))de Jenny Kendler seria melhor para o texto:
    http://jennykendler.com/artwork/1006268_Sibling_Rivalry_Lovebites.html

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