Deus é foda
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Deus é foda.
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Se Ele existe precisa
ser infinito, cobrir tudo que existe, existiu e existirá. Precisa
ser o mesmo para os muçulmanos, para os judeus, para os cristãos,
para os budistas, para os xintoístas. Um Deus único para as formigas, para os porcos, para
as vacas, para os párias. Para as vítimas e para os assassinos.
Uns guardam a sexta-feira, alguns guardam o sábado, outros o domingo, a segunda fica desprotegida.
Uns guardam a sexta-feira, alguns guardam o sábado, outros o domingo, a segunda fica desprotegida.
3
Deus não precisa ser
único. Mas aí Ele não seria infinito. Haveria um vácuo
delimitando Ele do resto dos demais deuses. Feito água e óleo. Deus
não sendo único explicaria uma série de questões, porque às
vezes ISTO, porque às vezes AQUILO. Mas criaria outros problemas.
Provavelmente, seriam indiferentes a você. Estariam mais
preocupados no relacionamento interdivino. Talvez discutissem uns com
os outros, talvez imaginassem que acima deles houvesse um Outro
único. Certamente ergueriam Igrejas e Templos buscando a atenção
deste Outro maior, a última camada das cascas de cebola.
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Deus é grande,
onipotente, onisciente. Imagine-se Deus: alguém capaz de
interferir em cada célula do seu corpo, cada cabelo, cada fio, no
funcionamento dos neurônios, no crescimento das unhas, no bater do
coração. Alguém assim estaria muito longe da experiência humana. Não haveria proximidade. O
que poderíamos dizer sobre um Deus assim? Seria um Deus com o qual
haveria diálogo?
Sem diálogo, a quem
interessaria Deus?
4,5
Se Deus cabe no
Universo, não cabe em nós. Se cabe em nós, é pequeno para o
Universo.
5
O pássaro cuco invade
ninhos de outras aves, bota seu ovo ali, que é criado e alimentado
pelos pais adotivos. O crocodilo protege seus filhotes na boca. Entre
os leões, quando há uma mudança na liderança do grupo, o novo
alfa canibaliza os antigos filhotes o que fará as mães entrarem
imediatamente no cio. A ostra vive na concha. O plâncton vive solto.
O mosquito vive de sangue. O colibri vive da flor.
Santo Isidoro escreveu
um bestiário e das observações da natureza depreendia lições,
pois se acreditava que tudo que existia possuía um propósito. Já
não vemos mais sentido.
A natureza revela que
existem muitas possibilidades, muitas vezes antagônicas, contrárias
e que todas podem funcionar, de acordo com um contexto.
Deus não é a Palavra.
São muitas. É o sim, o não, o talvez e o silêncio. Simultâneo.
Sendo assim, a Fé é
impossível e inviável. A Fé é o paradoxo.
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Ou se tem Fé ou não
se tem.
Um pensador árabe
tentou alcançar Deus pela lógica. Quase enlouqueceu. Ao vê-lo em
depressão, um amigo sugeriu que frequentasse as cerimônias e os
rituais de música, dança e transe dos sufistas. A emoção o levou
mais perto de Deus.
Quando os cruzados
cristãos catapultavam as cabeças sarracenas sobre as muralhas, eles
também estavam cheios de emoção. Pertos de Deus e longe do
sentimento.
Paixão e razão são
facas sem cabo e sem guarda, tanto ferem quanto cortam.
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Outros também
esperavam cirurgias. A maioria dedilhava algo nos celulares, checava
Facebook, conferia e-mails. Monitores coloridos para preencher
olhares vagos. Meu tio não é tecnológico. Estava com uma agenda de
papel na mão, onde marcava compromissos e telefones. Numa página em
branco, ele começou a rabiscar um desenho. Nunca soube que meu tio
soubesse desenhar. Traços retos e losangos formaram uma planta.
Esticou linhas para levantar paredes. A gente esperou seis horas no
hospital. Revezávamos para tomar um café. Contávamos piadas. Do
outro lado da rua, passou um sujeito com uma sonda. Perguntei a meu
primo o que era aquele desenho. Ele explicou: uma casa. Eles tinham
um terreno em Buri. Buri? Onde fica? Longe pra caralho. Um sitiozinho
para passarem a velhice. Então eu entendi. Não era um desenho. Era
uma prece.
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Ela sobreviveu algumas
semanas. Continuei indo lá, estava desempregado e esperando os
resultados do vestibular. Em um destes dias, fiquei fumando em uma
rua estreita, paralela ao hospital. Não era uma passagem
movimentada. O sol se punha atrás de mim e refletia nas janelas do
edifício, feria de luzes minha vista. Enquanto isto eu escutava um
choro insistente, um grito, poderia ser alguém morrendo, poderia ser
frescura, poderia ser minha tia. Era bonito e terrível.
Foi aí que percebi.
Deus é foda. Como toda boa foda, não tem palavra que dê conta. Não
tem razão ou explicação. Emoção pode estragar tudo. É um
diálogo, mas não tem nenhum diálogo. É se abrir para a violência,
se abrir para o arregaço.
Deus é foda, mas
queremos chamar de amor.
(fotografia Balthazar Korab)
Brontops é foda.
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