quinta-feira, 12 de abril de 2018

Onirogrito

 Deus é foda

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Deus é foda.


2
Se Ele existe precisa ser infinito, cobrir tudo que existe, existiu e existirá. Precisa ser o mesmo para os muçulmanos, para os judeus, para os cristãos, para os budistas, para os xintoístas. Um Deus único para as formigas, para os porcos, para as vacas, para os párias. Para as vítimas e para os assassinos.

Uns guardam a sexta-feira, alguns guardam o sábado, outros o domingo, a segunda fica desprotegida.

3
Deus não precisa ser único. Mas aí Ele não seria infinito. Haveria um vácuo delimitando Ele do resto dos demais deuses. Feito água e óleo. Deus não sendo único explicaria uma série de questões, porque às vezes ISTO, porque às vezes AQUILO. Mas criaria outros problemas. Provavelmente, seriam indiferentes a você. Estariam mais preocupados no relacionamento interdivino. Talvez discutissem uns com os outros, talvez imaginassem que acima deles houvesse um Outro único. Certamente ergueriam Igrejas e Templos buscando a atenção deste Outro maior, a última camada das cascas de cebola.

4
Deus é grande, onipotente, onisciente. Imagine-se Deus: alguém capaz de interferir em cada célula do seu corpo, cada cabelo, cada fio, no funcionamento dos neurônios, no crescimento das unhas, no bater do coração. Alguém assim estaria muito longe da experiência humana. Não haveria proximidade. O que poderíamos dizer sobre um Deus assim? Seria um Deus com o qual haveria diálogo?

Sem diálogo, a quem interessaria Deus?

4,5
Se Deus cabe no Universo, não cabe em nós. Se cabe em nós, é pequeno para o Universo.

5
O pássaro cuco invade ninhos de outras aves, bota seu ovo ali, que é criado e alimentado pelos pais adotivos. O crocodilo protege seus filhotes na boca. Entre os leões, quando há uma mudança na liderança do grupo, o novo alfa canibaliza os antigos filhotes o que fará as mães entrarem imediatamente no cio. A ostra vive na concha. O plâncton vive solto. O mosquito vive de sangue. O colibri vive da flor.

Santo Isidoro escreveu um bestiário e das observações da natureza depreendia lições, pois se acreditava que tudo que existia possuía um propósito. Já não vemos mais sentido.

A natureza revela que existem muitas possibilidades, muitas vezes antagônicas, contrárias e que todas podem funcionar, de acordo com um contexto.

Deus não é a Palavra. São muitas. É o sim, o não, o talvez e o silêncio. Simultâneo.

Sendo assim, a Fé é impossível e inviável. A Fé é o paradoxo.


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Ou se tem Fé ou não se tem.



Um pensador árabe tentou alcançar Deus pela lógica. Quase enlouqueceu. Ao vê-lo em depressão, um amigo sugeriu que frequentasse as cerimônias e os rituais de música, dança e transe dos sufistas. A emoção o levou mais perto de Deus.

Quando os cruzados cristãos catapultavam as cabeças sarracenas sobre as muralhas, eles também estavam cheios de emoção. Pertos de Deus e longe do sentimento.

Paixão e razão são facas sem cabo e sem guarda, tanto ferem quanto cortam.


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Outros também esperavam cirurgias. A maioria dedilhava algo nos celulares, checava Facebook, conferia e-mails. Monitores coloridos para preencher olhares vagos. Meu tio não é tecnológico. Estava com uma agenda de papel na mão, onde marcava compromissos e telefones. Numa página em branco, ele começou a rabiscar um desenho. Nunca soube que meu tio soubesse desenhar. Traços retos e losangos formaram uma planta. Esticou linhas para levantar paredes. A gente esperou seis horas no hospital. Revezávamos para tomar um café. Contávamos piadas. Do outro lado da rua, passou um sujeito com uma sonda. Perguntei a meu primo o que era aquele desenho. Ele explicou: uma casa. Eles tinham um terreno em Buri. Buri? Onde fica? Longe pra caralho. Um sitiozinho para passarem a velhice. Então eu entendi. Não era um desenho. Era uma prece.


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Ela sobreviveu algumas semanas. Continuei indo lá, estava desempregado e esperando os resultados do vestibular. Em um destes dias, fiquei fumando em uma rua estreita, paralela ao hospital. Não era uma passagem movimentada. O sol se punha atrás de mim e refletia nas janelas do edifício, feria de luzes minha vista. Enquanto isto eu escutava um choro insistente, um grito, poderia ser alguém morrendo, poderia ser frescura, poderia ser minha tia. Era bonito e terrível.

Foi aí que percebi. Deus é foda. Como toda boa foda, não tem palavra que dê conta. Não tem razão ou explicação. Emoção pode estragar tudo. É um diálogo, mas não tem nenhum diálogo. É se abrir para a violência, se abrir para o arregaço.

Deus é foda, mas queremos chamar de amor.


(fotografia Balthazar Korab)