segunda-feira, 26 de maio de 2014

Telegrama





A retirada, segundo o testemunho do tenente Eugenio Corti


(Trecho de “Inferno: o mundo em guerra 1939-45” (Intrínseca), de Max Hastings)



Em 12 de janeiro (de 1943), quatro frentes russas atacaram o exército do Don, ao norte de Stalingrado, repelindo as forças do Eixo, que fugiram em debandada. A Divisão Pasubio, parte do VIII Exército italiano no bolsão do Don, viu-se lutando para seguir na direção oeste. Sem combustível, as infelizes tropas foram obrigadas a abandonar armas pesadas e fugir a pé. “Veículos repletos de cargas eram abandonados na estrada”, escreveu o tenente de artilharia Eugenio Corti. “Partiu meu coração vê-los. Quanto esforço e dinheiro aquele equipamento deve ter custado à Itália!” Os soldados exaustos que tentavam pegar caronas em viaturas alemãs eram repelidos com berros e palavrões.

Corti fez esforços inúteis para preservar a disciplina em sua unidade. “Porém, como esperar que pessoas desacostumadas a viver em ordem como se civis se tornem ordeiras (...) simplesmente porque se veem usando uniformes? Enquanto o fogo inimigo chovia, a chusma apressava seu passo cambaleante. Vi, então uma das cenas mais lamentáveis da retirada: italianos matando italianos (...) Não éramos mais um exército; eu não estava entre soldados, mas entre criaturas que não podiam se controlar, obedientes a um único instinto animal: autopreservação.” Ele amaldiçoava sua própria brandura, que não lhe permitiu matar um homem que desafiou a ordem de que somente feridos poderiam viajar nos poucos trenós. “Inúmeros exemplos de fraqueza como a minha explicavam a confusão em que nos encontrávamos (...) Um soldado alemão entre nós não conseguiu disfarçar seu desdém. Preciso admitir que tinha razão (...) estávamos lidando com homens indisciplinados e desnorteados.”

Num posto de primeiros socorros, “os feridos jaziam uns por cima dos outros. Quando um dos poucos auxiliares de enfermagem que cuidavam deles apareceu com um pouco de água, aos gemidos foram acrescidos os gritos daqueles em que ele inadvertidamente tropeçava. Na parte externa, colocou-se palha sobre a neve, onde centenas de homens estavam deitados (...) Fazia provavelmente quinze ou vinte graus negativos. Os mortos estavam misturados aos feridos. Um médico fazia a ronda: ele mesmo havia sido ferido duas vezes por estilhaços enquanto fazia amputações com uma navalha.”

Independentemente dos exércitos que predominavam na luta, os sofrimentos russos persistiam. Numa cabana camponesa, Corti encontrou uma família aflita. “Fui recebido pelo cadáver de um velho gigantesco, com uma longa barba branca, deitado numa poça de sangue (...) Acuadas contra uma parede, aterrorizadas, estavam três ou quatro mulheres e cinco ou seis crianças – russas, magras, delicadas, rostos brancos como cera. Um soldado comia com calma batatas cozidas (...) Como a casa estava aquecida! Insisti que as mulheres e as crianças comessem antes que outros soldados chegassem e engolissem tudo.” Soldados do Eixo costumavam ficar estupefatos e impressionados com o estoicismo dos russos, que mais lhes pareciam vítimas do comunismo do que inimigos. Mesmo após os invasores trazerem desgraças indizíveis ao seu país, camponeses simples às vezes demonstravam uma simpatia humana pelos aflitos e sofridos soldados do Eixo que os comovia. Corti escreveu: “Nas pausas daquelas marchas, muitos de nossos compatriotas foram salvos das ulcerações de congelamento pelos cuidados altruístas e maternais de mulheres pobres.”

(...)

Corti horrorizava-se com o espetáculo do massacre de prisioneiros russos pelos alemães, embora soubesse que o Exército Vermelho fazia o mesmo com seus prisioneiros. “Era extremamente penoso – pois éramos homens civilizados – estar preso naquele conflito selvagem entre bárbaros.” Ele se sentia dividido entre o nojo diante da crueldade dos alemães, “que, por vezes, os desqualificava, a meus olhos, como membros da família humana”, e o respeito relutante por sua força de vontade. Lamentava o desprezo que tinham por outras raças. Ouvira falar sobre oficiais alemães que matavam a tiros soldados feridos demais para andar, sobre estupros e assassinatos, sobre trenós carregados com italianos feridos sequestrados pela Wehrmacht. Porém, admirava-se com a maneira como soldados alemães desempenhavam suas obrigações por instinto, mesmo sem ordens de um oficial ou graduado. “Eu (...) me perguntava (...) o que seria de nós sem os alemães. Com relutância, eu era obrigado a admitir que, sozinhos, acabaríamos nas mãos dos inimigos (...) Agradeci aos céus por eles estarem conosco naquela coluna (...) Sem sombra de dúvida, ninguém se iguala a eles como soldados.”

Repetidas vezes, tanques alemães e aviões Stuka repeliram ataques de blindados russos, permitindo que as colunas em retirada prosseguissem sob os terríveis morteiros soviéticos. Os testículos de um soldado italiano foram decepados por um estilhaço de bomba. Enfiando-os no bolso, o homem amarrou o ferimento com barbante e seguiu em frente. No dia seguinte, num posto de primeiros socorros, ele arriou as calças e, remexendo nos bolsos, segundo o relato de Eugenio Corti, ofereceu ao médico, “na palma da sua mão, os testículos escurecidos misturados com farelo de biscoito e perguntou se poderiam ser costurados no lugar.” Corti sobreviveu até alcançar o terminal ferroviário em Yasinovataya e, dali, viajou para a Alemanha através da Polônia. Um trem-hospital finalmente levou-o para casa, em sua amada Itália. No fim de 1942, um general italiano afirmou que 99% de seus compatriotas não apenas esperavam perder a guerra, como desejavam ardentemente perde-la o mais depressa possível.”


domingo, 11 de maio de 2014

Achados



1)I want to play god

Aula de anatomia com esculturas clássicas, por Cao Hui. Via Le Zèbre bleu.



2)Slave Girl Comics

(1949) Via Pappy´s Golden Age Comics


3)Navalha na Carne, peça de Plínio Marcos, na edição de Walter Hüne.



Veja mais imagens no Gramatologia, que fez a conexão com a versão de Robert Massin para "A Cantora Careca" de Ionesco. Pedro Bandeira relembra sua parte na história na Folha.

4)Ruínas de Igrejas e capelas abandonadas pelo interior do Brasil. (Via Cesar Silva.)

(aliás, vale uma espiada no site de "Exploração Urbana": Lugares esquecidos)




quinta-feira, 1 de maio de 2014

Telegrama





História pausterizada







(trecho de Pequenas Maravilhas: Como os micróbios governam o mundo, de Idan Ben-Barak, Zahar. Ilustração de Nicolas Nemiri )


"No romance histórico Xógum, de James Clavell, ambientado no Japão de quatro séculos atrás, há uma cena memorável em que o navegante inglês John Blackthorne, recém-chegado ao país, é convocado pelo soberano japonês Toranaga e submetido a um longo interrogatório. Em certo momento, Blackthorne fala a Toronaga da política europeia contemporânea: a Holanda, que anteriormente era um Estado vassalo do rei espanhol, rebelou-se e está em guerra com a Espanha. O governador feudal nipônico, governante de uma sociedade estritamente hierárquica, fica furioso – uma rebelião contra um rei legítimo é inaceitável. Blackthorne, que corre grande risco de ter a cabeça decepada nesse ponto, diz “Mas havia circunstância amenizadoras.” Ainda assim, Toronaga não quer saber: “Não existem `circunstâncias amenizadoras` quando se trata de uma rebelião contra um soberano”, exclama, e Blackthorne responde: “A menos que a rebelião vença.”

É um momento tenso: Blackthorne certamente morrerá por sua intolerável insolência e as demais mil e tantas páginas terão de ser deixadas em branco. Mas não. Toranaga ri e responde: “O senhor citou a única circunstância amenizadora.”

Do Japão fictício passamos à França real da década de 1860, quando irrompeu uma batalha furiosa entre cientistas, acompanhada de perto pelo público em geral (ou, ao menos pelas classes mais altas, que já são um público suficiente para nossas necessidades presentes). De um lado estavam os que defendiam a teoria da geração espontânea, segundo a qual os microrganismos são criados regularmente a partir da matéria orgânica em decomposição. Do outro estavam os que afirmavam que a vida só surge a partir da vida – o principal deles era o grande Louis Pasteur, o homem cujas conquistas lhe valeram, merecidamente, o título de “pai da microbiologia”, ao lado de Robert Koch.

Pasteur havia preparado soluções esterilizadas de leveduras em frascos de vidro cujos pescoços estavam dobrados de tal maneira que os microrganismos não poderiam entrar, como ele afirmou corretamente.

Qualquer forma de vida encontrada ali deveria ter sido gerada espontaneamente a partir da matéria orgânica morta, alegava Pasteur. A geração espontânea, é claro, não ocorreu: nos frascos do tipo “pescoço de ganso” de Pasteur não cresceu nenhum mofo por longos períodos de tempo. Essas demonstrações, características das habilidades técnicas e da lógica poderosa do virtuose Pasteur, praticamente encerraram o debate.

Digo praticamente porque nesse momento surgiu em cena Felix Pouchet, o principal rival de Pasteur, que preparou um frasco semelhante, mas com uma infusão de feno esterilizada ao calor, em vez de uma solução de levedura na água. O mofo surgiu imediatamente. Pouchet podia agora argumentar que o experimento de Pasteur provava apenas que a geração espontânea não poderia ocorrer no caso muito específico da levedura em água. Havia ali evidências concretas bastante problemáticas para Pasteur. Isto também pode ser inquietante para você: como é possível que a vida tenha surgido de repente em um recipiente estéril? “Estéril” não significa que não há nada vivo ali dentro? Então, de onde veio o mofo?

A resposta, como sabemos hoje, é que a infusão de feno de Pouchet não era estéril: a técnica de esterilização pelo calor que todos usavam na época, chamada atualmente de pasteurização, era adequada para eliminar a maior parte das espécies de micróbios, mas ninguém sabia que certas espécies podem gerar esporos – envoltórios externos resistentes que protegem o micróbio de condições adversas, sendo capazes de suportar temperaturas muito elevadas. Esses micróbios que sobrevivem ao processo de pasteurização podem, uma vez terminada a esterilização, livrar-se de sua camada protetora externa, tornar-se ativos e se multiplicar. Eles se banqueteiam na lactose do leite e excretam ácido láctico que é azedo; por isso que o leite pasteurizado fica azedo depois de mais ou menos uma semana, mesmo na geladeira. Para preparar leite estéril, inteiramente livre de esporos (do tipo que chamamos “longa vida”), é necessário um tratamento mais rigoroso.

Voltemos então a Pasteur, que não sabia da existência dos esporos. O que ele poderia fazer ante esse desafio à sua posição? A atitude cientificamente correta teria sido tentar replicar o experimento e então encontrar nele alguma falha técnica (como ele conseguira fazer com tentativas prévias de Pouchet) ou propor alguma explicação teórica para os resultados do rival, que poderia então ser testada (sugerindo talvez a existência de micróbios resistentes ao calor, que foram de fato responsáveis pelo resultado, ou alguma outra razão possível). Se tudo isso falhasse, ele poderia desistir e admitir a derrota.

Mas Pasteur não seguiu nenhum dos três caminhos. Em vez disso, ele ignorou inteiramente os resultados de Pouchet. Para tal, apoiou-se na opinião pública favorável e em suas convicções privadas. Pasteur, que era católico, opunha-se fortemente a qualquer ideia que tivesse algum cheiro de ateísmo, inclusive as novas terias de Darwin, que sopravam do outro lado do canal da Mancha. Sendo um conservador religioso, ele defendia a ideia de que a vida só havia sido criada uma vez – pelo Criador, no início dos tempos, como descrito nas escrituras – e portanto não continuaria a surgir diariamente. A atitude de Pasteur se encaixava muito bem no clima político francês da época, por isso ele não sofreu grandes pressões e pôde simplesmente dar de ombros a seus oponentes.

Pouchet, que também era um homem pio e baseava suas teorias em questões religiosas (bastante elaboradas, reconheço), foi deixada de lado. Pasteur venceu o debate e seguiu em frente, conquistando outros triunfos científicos. Sua vitória, nesse caso, não se deveu ao fato de ser um cientista exemplar; apoiou-se fortemente em circunstâncias públicas favoráveis e em suas noções preconcebidas.

Há duas questões nesse episódio que, para mim, são bastante bastante desconcertantes, e também esclarecedoras: uma delas é científica; outra, histórica.

A questão científica é que Pasteur não foi inteiramente profissional em sua conduta. Geralmente, temos a tendência de enxergar os grandes cientistas como a encarnação do espírito da ciência – observadores imparciais da natureza que seguem suas observações para onde quer que os levem. Isto não passa de uma imagem ideal e, dessa forma, é algo dificilmente personificado por homens de carne e osso.  Um cientista, até mesmo um dos grandes, é um ser humano, com todas as falhas e falácias humanas que isso implica. Além disso, homens visionários tendem a ser muito obstinados, a ponto de se tornarem cabeças-duras. Eles possuem intuições e convicções, além de seu orgulho. Se Pasteur admitisse, depois de tanto tempo e esforço, que seus rivais poderiam ter estado certos, isso não apenas iria contra sua concepção da natureza, como seria um golpe bastante forte em seu ego, que não era nada insignificante.

No fim das contas, provou-se que Pasteur estava certo. E isso não se deveu a seus próprios experimentos, mas aos de pesquisadores futuros que seguiram seus passos. É uma estranha maneira de proceder, quando paramos para pensar no assunto, mas é assim que a ciência funciona. Ela dá resultado porque os que seguem por um caminho não o fazem cegamente, eles verificam e reverificam as ideias que recebem de seus predecessores, descartando então as que são vistas como imprecisas. Pasteur defendia a ideia de que a vida surge da vida. Ele estava certo. Esse é o veredicto da ciência. Assim como no caso do vassalo rebelde, essa é uma circunstância amenizadora.

A questão histórica é que Pasteur, um grande cientista, opunha-se às ideias evolutivas de Darwin e lutava do lado do conservadorismo religioso. É uma boa lição a ser absorvida – que os cientistas às noções e alinhamentos das gerações futuras. Eles trabalham com o conhecimento, o entendimento e os meios técnicos que têm às noções e alinhamentos das gerações futuras. Eles trabalham com o conhecimento, o entendimento e os meios técnicos que têm à disposição, e também são, em grande medida, influenciados pela sociedade. Não devemos lhes atribuir erroneamente nossas próprias visões de mundo, por maior que tenha sido o papel que eles desempenharam em cimentar essas mesmas visões.

O veredicto da história é complicado. Como devemos julgar um homem que não teve um comportamento profissional, mas que estava acidentalmente certo? Devemos enaltece-lo por seus instintos, ficar decepcionados pelo modo como levou vantagem ou apenas nos contentar com o fato de que, ao menos desta vez, a verdade venceu (ainda que por métodos estranhos)?

Você decide. Do meu lado, eu me pergunto o que Pasteur teria pensado de tudo o que sabemos hoje sobre a vida e os microrganismos. Ele teria ficado contente e fascinado, ou chateado com as conclusões modernas, abertamente seculares, a que chegamos com base em seus achados? Xógum, se posso voltar a ele, é um livro repleto de homens fortes. De fato, James Clavell parece ser da escola de pensamento que diz que os homens fortes fazem a história[3]. Vendo Pasteur, eu talvez acrescentaria que, se é isso que homens fortes fazem, a história que eles produzem raramente é a história que pensaram estar produzindo."


[3] A escola oposta diz que todos os homens são engrenagens inconscientes da marcha inevitável da história.