sexta-feira, 9 de setembro de 2011

agosto a setembro





“O ser humano não enlouquece pelas guerras, catástrofes, desastres, epidemias; o cadarço que arrebenta todo dia na hora de amarrar os sapatos isto sim enlouquece o ser humano.”, disse certa vez um grande homem[1].

Quem respira sabe, para viver é necessário inspiração. Empenhei a vida na confecção de um cadarço resistente. Cadarço ou atacador, nada mais que uma forma simplificada de corda. A corda, nada mais que um rolo de fibras. As fibras, nada mais que materiais muito finos e alongados. Estes fios numa trança transversal e longitudinal, de forma a criar força através de sua reunião. Suas pontas podem ser chamadas de pontas- de-cadarço, ponteiras, aguilhas, agulhetas, uroboleta, unhas-dos-fios, rabos-de-capeta.

Estudei os fios e os fiapos, o cabo de aço e a teia de aranha. Investiguei a biologia do sisal e do algodão, e o método pelo qual os povos pré-colombianos teciam seus mantos. Da Amazônia, trouxe pés de cipoeira-brava, de liana-vermelha, figueira de sete caudas, plantei-os em vasos do meu apartamento. Pelo meu quarto voejam borboletas e mariposas nascidos em minha coleção de casulos de seda. Na mesa da cozinha, experimentei os diversos nós possíveis e os encadeamentos pelos buracos, a quantidade adequada de buracos, cheguei a 118 formas de entrelaçar, das quais selecionei 25, entre elas o nó direto, o francês, o corrediço, o zigue-zague americano, a volta do fiel, o ostromo e o górdio. Na área de serviço, criei amostras caseiras de polímeros, do poliéster, da poliamida, da policarbamida, do poliuretano elastomérico. Descobri casualmente a decomposição das diaminas pelos raios ultravioleta quando esqueci as fibras no varal. Cheguei perto, muito perto.

O grande homem envelheceu. Agora aposentado, caminhava todo final de tarde pelo calçadão. Faz bem ao coração; para a cabeça, faz bem olhar a bundinha geralmente inalcançável das adolescentes. Ele sentado no banco parecia um senhor comum. Fazia frio naquela tarde, a praia meio deserta, e eu me aproximei reverente. O grande homem continuava sendo grande, mesmo velho, gordo, acomodado e pelancudo, mesmo na esperada ausência de grandeza. Contei-lhe meu projeto, como me inspirara, como me dera um objetivo.

O grande (velho, gordo, acomodado e pelancudo) homem riu. Primeiro, lembrou que as pessoas têm forças e disposições diferentes; aquilo que era resistente para uma, não seria para todas. Segundo, de que valeria um cadarço indestrutível se não o fossem os aros por onde ele se entrelaça ou as ponteiras que os reúnem? Terceiro, o custo de um atacador inquebrantável jamais poderia ser superior ao do próprio sapato. Quarto, e aqueles que andam de chinelos e enlouquecem ao se soltar as tiras? Quinto, criaram o velcro e hoje o homem enlouquece por não mais se arrebentarem os cadarços. Escutei tudo com atenção. Até ele terminar, o sol havia se posto e as ondas batiam nas pedras. Era dia de semana, estava frio. Eu o estrangulei com meu protótipo. Conforme esperado, funcionou à contento.





In virgine mulieres et fugitivi et compediti
Em Virgem, as mulheres, os fugitivos e aqueles que têm os pés atados

(39, 10) Satiricon, Petronius
[2]


[1] Se não me engano, a frase original é do Bukowski

[2] Este conto não teria sido construído sem o generoso auxílio do google










(.)

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