sexta-feira, 6 de maio de 2011

motivo




(Conheça a nova revista eletrônica literária Outros Ares, editada por Marcelo Barbão e Rafael Rodrigues. Foto de Mario Amaya. Nesta primeira edição, entrevista com o escritor Menalton Braff e contos do próprio Menalton e também de Fábio Farias, Amauri Terto e Sílvio Teixeira)

E o rapaz de boné percorre as ruas do bairro. Observa a repetição de muros, grades, lanças, portões, um do lado do outro e do lado do outro, numa repetição que remete a corredor de presídio, mas é uma rua da periferia. Moradores sacrificam a fachada das casas em nome da segurança ou por uma garagem estreita onde estacionar o carro. O rapaz passa por árvores esquálidas e frágeis, elas equilibram-se nas calçadas estreitas, dividindo território com postes de onde se esparramam cabos de energia, são como varais para chuteiras e rabiolas das pipas. O rapaz cerra os olhos, é manhã, dia de semana, crianças na escola ou na creche ou na avó, residências vazias, ao longe o rumor das avenidas e dos ônibus, um silêncio que não é o da cidade, um silêncio de cabeça submersa.

E o rapaz de boné arrasta sua carroça de sucata, caminha em um terno surrado com A SENTINELA sob o braço, numa bicicleta faz entregas pela mercearia, carrega um buquê de vassouras de cabo vermelho, corre atrás da linha da pipa levada pelo vento. Ele assobia o apito dos amoladores de faca, bate palmas com as mãos enfiadas entre as grades do portão feito um prisioneiro, toca campainha, chama “ô de casa”. Se o portão está aberto, se o muro permite, ele fere o pé no caco de garrafa cimentado sob a desculpa de resgatar a linha ou pegar a bola.

Se ele entra ou se ele espera, tanto faz, daí aparece a dona da casa.

Vem atender, enxugando as palmas e costas das mãos no avental ou no pano de prato, deixa as cuecas do marido e o uniforme das crianças no varal, arrastando chinelo, ou então xinga, apaga o cigarro (pintava as unhas dos pés), escolhia arroz, separava as pedras do feijão, larga o MSN, sai do perfil do Orkut. O rapaz de boné se desculpa, não queria incomodar, não queria assustar, oferece o produto, uma vassoura ou uma rede ou a Palavra, mostra a Pipa, pergunta se não tem papelão, sucata, roupa velha. A dona da casa recusa com raiva, indiferença, educação, não pedi entrega nenhuma não moço. Mas o rapaz de boné insiste. Conversa, convence, comove, sem medo de tiro, de rottweiller, de pit bull; pede um copo de água, mesmo que ofereçam café, ele prefere água. A dona de casa suspira e se apieda: deixa o rapaz de boné entrar. Vão os dois para a cozinha, bebe ali mesmo na porta, água de torneira ou de filtro. São Benedito, Santa Ceia, Lembrança de Aparecida, ímãs na geladeira. Enquanto bebe, o rapaz tira o boné, em um gesto entre tímido e educado. A dona de casa se espanta ou se contém, mas não consegue parar de fitar o crânio do rapaz, naquele buraco negro sobre sua cabeça sem cabelo. Não repare não, dona, esta é a minha moleira de criança que não fechou, ficou aí este buraco, mas não dói nem nada. Quando criança, até doutor das Clínicas tirou foto para estudar, as pessoas se assustam mesmo, mas eu já tomei gosto pela coisa. Se achegue para ver de perto.

E a mulher, intrigada e horrorizada, sem saber o que fazer, com muxoxo de rejeição nos lábios, aproxima-se daquele buraco, e o rapaz para fazer graça sopra-lhe, como quem apaga uma vela. A mulher sorri, o cabelo desprende, e ela se lembra da última vez que correu, que era criança, que havia um quintal. O rapaz sopra de novo, e vem um cheiro de chuva, brisa úmida de cachoeira, de pedra fria coberta de limo. A mulher fica rente a ele, e ele lhe sopra mais uma vez, e surgem lembranças de um rio amarelo de águas mel, os raios do sol teciam uma rede de luz sob a areia submersa, os peixes dançavam naquele âmbar, naquele Reino de Águas Claras. As escamas prateadas são como armaduras para os cavaleiros andantes, seus corpos dirigíveis de chumbo, as cabeças bálanos de aço. A mulher relembra que um rio onde se respira é um rio onde se voa. Ela reabre os olhos, e encara o rapaz, o marido na firma, as crianças na escola, o cachorro na corrente, o feijão no fogo, Jesus na Igreja e a roupa para pendurar e o rapaz expira por aquele buraco, a soprar e a soprar, feito um lobo derrubando barracos e carregando lençóis, feito um avião que se despedaça como um ovo e arremessa seus passageiros em um último desnudar, e os dedos dela estão nos buracos dele e os dele nos buracos dela, ele nadando ela nadando ele.

E são onze e meia e está na hora de acabar a manhã. O menino se veste e recoloca o boné. Elas não querem que ele vá. A que pintava as unhas dos pés, Me leve àquele rio. Ele lamenta, já não há um rio assim. Canalizaram, envenenaram. Drenado para lavar carros ou cultivar soja. Foi domado entre as avenidas. A mãe que escolhia arroz chora e implora para não deixá-la assim, agora este ar não me serve mais para respirar. O rio está morto. Me deixa naquela água. O rapaz não gostaria, mas atende a vontade delas; ele não poderia refrear o desejo.

Quando as encontram, elas estão afogadas, nuas e caídas sobre o piso frio da cozinha. É por isto que já não nascem mais filhos dos botos.



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