sexta-feira, 20 de março de 2020
asas cortadas
Paco era um daqueles tios que só surgiam no Natal. Os demais velhos não gostavam dele, mas o suportavam, era tempo de paz, amor, reconciliação, aquela conversinha de sempre. Só a vó e nós, as crianças, gostávamos dele. Não só pelo seu jeito caloroso e engraçado, mas também pelas suas histórias de garimpo: como fez sua vida do nada, passando a perna nos outros, sendo enganado, como quase morreu, como quase matou (mas ficávamos na dúvida, será que não matou mesmo?). Ensinou como reconhecer prata pelo peso e ouro pela mordida. Tenho até hoje, guardado no alto de uma estante, uma flecha de índio que ele me deu. Foi muito rico, perdeu quase tudo, mas parecia não se importar, "Da vida, nada se leva".
A última vez que o vi não era Natal. Reapareceu quando minha mãe teve câncer. Me entregou um maço de dinheiro em um envelope, "Seu pai jamais aceitaria". Tio Paco explicou que havia vendido seu último tesouro, um Alicanto.
O Guará e o Flamingo adquirem sua cor graças à alimentação de camarões avermelhados. O Alicanto também. Possui um bico de ferro, com o qual raspa e fica dourado, prateado, roxo, dependendo do que come: ouro, prata, ametista. A ave até voa, desde que esteja com fome. O peso das pedras em digestão não permite. Por via das dúvidas, meu tio cortou suas asas.
Não muito depois do dia do envelope, encontraram Paco morto em sua casa à beira da Radial Leste. Um tiro na nuca e a sola dos pés cortada com navalha. A polícia disse que Paco abriu a porta para o homem, portanto meu tio conhecia o assassino. E, certamente, o assassino conhecia meu tio.
(O Alicanto, criatura folclórica chilena, foi sugerida na lista de desenhos #Creatuanary)
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