sexta-feira, 8 de abril de 2016
mácula
1.
Dona Imaculada não deixou herdeiros. Apenas gatos, que felizmente, sabiam se virar: pulavam telhados, muros e lajes, perseguiam ratos e sabiás – para comer ou pelo prazer besta de matar -, subiam na pia da cozinha para roubar o bife descongelando para almoço. Por conta desses “filhos”, alguns vizinhos não gostavam muito de Dona Imaculada. Eram verdadeiros diabos, os felinos. Contrariando os bons hábitos higiênicos do restante da espécie, esses deixavam armadilhas, cagando logo depois dos capachos, feito presente bem diante da porta. Assim, ao saírem para o trabalho, as solas dos calçados eram engraxadas de baixo para cima.
Mas Dona Imaculada não tinha culpa. Ela nunca os atraiu. Foram eles que se achegaram nela, os bichanos a encontraram solitária, janelas e portas abertas, sem cacos de vidro ou lanças. Ela assistia aos desenhos na televisão ou ouvia programas de rádio. Às vezes se horrorizava com o noticiário, não por muito tempo: rezava e pedia proteção. Dona Imaculada poderia ter sido vítima de ladrões, moleques, escroques, ciganos, mas no muro alguém fizera o sinal, um código secreto próprio dos invasores de casa, “Mulher pobre, sem ninguém, retardada”. Todos a conheciam, todos sabiam que era sozinha e inofensiva e ninguém tinha coragem de tirar proveito da senhora.
Com exceção dos gatos. Ela reclamava dos animais, mas era uma reclamação vazia, de quem quer ter assunto para discutir, como quem fala do clima, se está frio, se está sol… Protestava contra esses folgados: comiam de sua comida, dormiam sobre sua cama. Mas, no fundo, ela gostava. Dona Imaculada era muito querida. Quem não eram queridos eram os gatos. Assim, tão logo, ela morreu, saíram distribuindo chumbinho na vizinhança. E lá se foram os gatos, os ratos, os periquitos, dois vira-latas e até um pangaré do carroceiro por conta dessa vingança.
2.
Dona Imaculada foi parar no Ceú. Ficou encantada com estar no Paraíso, era afinal a única possível vantagem de se estar velha e de se estar virgem. Como isso podia acontecer num bairro onde crianças comiam o cu de pombos e galinhas e irmãs se ofereciam em troca de bolacha? Não que não tivessem tentado, especialmente quando era mais nova. Mas Dona Imaculada era tão ingênua que não se prestava nem a isso. Havia o risco evidente dela sair contando para todo mundo e o canalha ser linchado na mão da vizinhança. E não havia possibilidade de ameaçá-la: medo pressupõe certa capacidade de previsão, e dona Imaculada sofria dessa benção.
3.
Ao menos, aparentemente, pois depois de uns dias, dona Imaculada pediu para falar com o Anjo encarregado de sua sessão. Dona Imaculada queria saber como poderia fazer para dormir. O Anjo, naquela paciência própria que só a eternidade favorece, explicou que ali não haveria necessidade de dormir ou descansar. No Paraíso, inexistia noite, treva, sombra, escuridão. Dona Imaculada explicou que estava cansada de olhar para o continente, queria deitar.
O Anjo, com a sabedoria de alguém confrontado com essa questão antes, sugeriu que afofasse as nuvens com as mãos, de forma a fazer um colchão próprio para se deitar. Dona Imaculada tentou. Primeiro como quem prepara massa de pão, mas o vapor d´água escapou-lhe entre os dedos. Em seguida, soprando, como criança inventando escultura de espuma, mas as correntes da troposfera impossibilitaram um leito decente, liso, que não provocasse dor na coluna.
4.
Dona Imaculada insistiu em falar com os superiores. E eles seguiram conforme a hierarquia própria dos Anjos, seguindo o fluxograma de São Tomás de Aquino: Arcanjos, Principados, Potestades, Virtudes, Dominações, Tronos, Querubins e até os sete Serafins, aqueles que deveriam estar ao redor do Senhor no momento do Juízo Final. Nenhum desses anjos se mostrou capaz de fornecer nem mesmo uma rede baiana para Dona Imaculada se balançar na varanda da eternidade. Dona Imaculada, sempre tão calma e pacífica, começou a ficar fula diante daquela tropa de burros. Ainda sob efeito daquela objetividade ingênua, quis saber de Deus, onde é que estava Deus, que somente ELE poderia resolver aquela pendenga ridícula. Ao mencionar o nome do Senhor, os demais Serafins e anjos demonstraram-se constrangidos. Então Ael, o maior de todos os Serafins, deu um passo adiante, encolheu suas sete asas e encurvou-se para sussurrar nos ouvidos de Dona Imaculada onde é que estava Deus: “Depois que fez o mundo, Deus voltou para o Caos de onde veio para morrer”. Cansada daquela burocracia teológica, Dona Imaculada pediu para reencarnar. Mas na forma de um gato, ou de um outro bicho capaz de se deitar onde bem lhe convier.
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