5. O conto maldito e o conto benfazejo
(Sérgio Sant´anna)
I
Quantas vezes não nos espreita o conto maldito, do qual
queremos fugir, mas algo assim como uma sina nos obriga a atravessá-lo? O conto
dos crimes hediondos, como a sevícia e morte de mulheres e crianças, que
preferíamos não escrever, como se o fazendo déssemos realmente à luz o monstro
e seus atos. Não a escrita lúdica, proporcionando o prazer das histórias
noires, policiais, como se o assassinato pudesse ser considerado uma das
belas-artes, como no livro de Thomas de Quincey, e, sim, o lance brutal de uma
lâmina espetando a carne indefesa, enquanto se abusa do corpo de quem não ousa
nem gritar em seu pavor. O conto do qual somos simultaneamente autor e presa,
pois passamos por ele como um flagelo e, no entanto, são apenas palavras que
nós mesmos encadeamos. Mas, nessas palavras, como que se materializam, por
exemplo, o maníaco que atrai o menino de nove anos, com a promessa de lhe dar
uma bola de presente, e este menino e sua dor muda, pois sua boca foi tapada
por uma das mãos do algoz. E não bastasse essa dor de carnes rasgadas, ao ser
violentado, tão logo termina o sexo macabro há a faca que lhe penetra as costas
até o coração. Um crime tão nefando que clamaria aos céus, houvesse um pastor
nos céus cuidando dos meninos aqui na
Terra. Mas, houvesse Deus, não seria Ele responsável também pelo estuprador e
assassino, pela extrema abjeção dessa criatura Sua? Não deveria Ele acudi-la em
sua confusão e infâmia?
II
Mas por que teríamos tanto pudor ou desprezo pelo conto
benfazejo, em que um homem deitasse o rosto na barriga da mulher grávida,
auscultando os ruídos naquele lago profundo e milagroso, enquanto a mulher, por
sua vez, lhe acariciaria os cabelos e, nesse momento, todas as possíveis
desavenças seriam esquecidas assim como toda angústia para dar lugar a um
entendimento mudo dos seres com o melhor de sua natureza?
(Conto do livro O Homem-Mulher (Cia das Letras). Imagem Via )