segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Escadas
Nº08: Ciranda
Já passa da meia-noite, os passageiros desembarcam do trem com pressa, no desespero de não perder o último ônibus, que se ainda não saiu, está em vias. João gostaria de correr, mas está mancando, pé torcido. A estação é antiga, não tem elevador e você precisa chegar até a escadaria. Vontade de abordar a um destes estranhos: “Pede para o motorista esperar, pede para ele segurar só mais uns minutinhos, que eu já estou chegando.” Todavia esta não é uma cidade pequena; se fosse não haveria metrô. Uma cidade pequena, na qual todos se conhecem, cheia de pequenos segredos notórios, coberta pela vigilância dos vizinhos divididos entre repressores e calorosos. Aqui é cada um por si. E João acelera o que a dor permite acelerar, enquanto os demais se distanciam. Fica por último na corrida, passo a passo até alcançar o corrimão da escadaria fixa. João prestes a subir aqueles degraus todos quando vê no alto, no sentido oposto, diante da escada rolante: Maria.
Dali de onde está, João não tem certeza se Maria o viu. Improvável, pois a conhecendo do jeito que é, tão desconfiada, ciumenta, emocionalmente instável. João sabe que Maria não anda tomando seus remédios direito, mas ele não insistiu, nem tentou convencê-la do contrário. No fundo, João concorda com as queixas de Maria: sente sua letargia, a ausência do viço nos olhos, ressecada, quieta. Agora, entretanto, diante desta situação, João se arrepende de ter se calado a respeito. Já a imagina gritando lá do alto indiferente ao fato de estar em meio a estranhos: “O que você está fazendo aí? Já não deveria estar em casa? Não estava no velório daquela sua tia? Que perfume é este? Quem torceu seu pé?” Se Maria estivesse domada pela química, João poderia lhe contar a verdade, ou quase toda: sobre Sofia, sobre as jóias, sobre Calvino, o Instituto e o Falcão Maltês. Mas tudo dera errado, e João perdera celular, um dente e quase todo dinheiro: não fosse a enfermeira ruiva arrumar uns trocados para o ônibus, João teria que voltar para casa a pé. Agora sem nada só poderia esperar a fúria de Maria em tapas e arranhões e a humilhação pública de ser espancado pela mulher. Talvez nem tão pública assim, pois não havia mais ninguém na plataforma para dividir este embaraço. Contudo, é bom se lembrar da presença inescapável das câmeras de segurança e da certeza que um filme destes estaria na rede antes que se contratasse o advogado, algum capaz de conter a sanha sensacionalista dos curiosos.
Mas a mente de João trabalha com hipóteses, com as alternativas em jogo. Não poderia voltar correndo, tentar pegar o próximo metrô. Como se sabe, neste horário, os trens a circular são poucos e já passa do horário de funcionamento deles. Tampouco poderia subir correndo as escadas. Maria pregaria a vista naquela corrida manquitola, como se João praticasse marcha olímpica. Ela seria bem capaz de voltar pelas escadas e muito facilmente o alcançaria, não só pela sua velocidade (Maria foi campeã de corrida na escola), mas também porque com quase toda probabilidade já não haveria mais ônibus com o qual fugir.
Ocorreu a João de se abaixar atrás da mureta que separa as duas escadas. Porém, se ele se dobrasse rápido demais, óbvio que Maria atentaria nele. Quem sabe, preocupada, supusesse a queda de um estranho, um qualquer que sentiu-se mal e ficaria ali jogado até o dia seguinte. Mas, se por outro lado, ele se escondesse lentamente, Maria também desconfiaria. Por certo, acreditaria ser um ladrão, alguém armando arapuca, tocaia para atacá-la tão logo chegasse ao fim da escada rolante. Ela poderia inclusive empregar o que aprendera no curso de jiu-jitsu e defesa pessoal, puxar-lhe os cabelos, fazendo-o revelar sua face e então exigir explicações, explicações sempre insuficientes.
João precisa se decidir logo, o tempo passa e os passageiros já devem estar embarcando no ônibus no ponto diante da estação. Ele ainda está incerto se ela o viu ou não, porém começa a ponderar porque Maria também parou do outro lado da escada rolante. Vai ver ficou tão furiosa que não consegue esboçar reação nenhuma, como os dentes trincados e travados do cão antes de mordida. João evita encarar Maria, isto seria difícil, ela está longe, mas deixa a imagem da mulher em seu campo de visão. A princípio, imagina ser uma bolsa. Mas depois observa que se trata de uma tipóia. Como ela teria machucado o braço? João pressupõe um acidente no treino de jiu-jitsu, mas hoje não há aula. Quando precisou mentir a respeito do velório da tia em Santos, Maria respondeu que ficaria em casa assistindo a um filme de John Woo. O que ela fazia ali, na estação, tão longe de casa? Pretendia passar a noite fora, certamente, pois o próximo trem seria o último daquela noite. Suspeitando de uma traição, João deseja/não deseja estar com sua arma: enfurecido atiraria dali mesmo. Ele sabe que acertaria, sempre teve boa mira. Ah, e se Maria tentasse escapar, fugir na hora do último trem, ele se jogaria diante dela, João bem mais forte e pesado, e ela veria a porta automática se fechar e a escapatória desaparecer túnel adentro. Durante aqueles instantes, João divaga sobre o que teria levado Maria a estar lá, na estação, naquele horário: começa a juntar os fatos e relembra da ligação durante a madrugada de um homem chamado Platão e daquele repentino interesse sobre ourivesaria e das anotações sobre o Templo do Sol. Estaria ela envolvida com a Organização ou seria um caso com o professor de jiu-jitsu? Deve ser a Organização, pois ela não sairia para encontrar o amante assim, toda desarrumada, usando o metrô. O mais lógico seria pegar um táxi. Ou esperar o homem passar em casa, afinal ela não esperava que João aparecesse por lá. A não ser que estivesse apaixonada. Ou encurralada.
* * *
Relembraram uma cena do filme de Woo, as armas dos irmãos/inimigos apontadas contra a boca um do outro, no nariz o cheiro de outras pólvoras: como as serpentes no caduceu, como dois corpos no espaço em mútua atração e repulsão, na órbita dos desesperados, girando ao redor de si mesmos na ciranda em direção ao ralo do mundo.
(Escher.)
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Encontrar a mulher na rua, não nos lembra Woo, mas Bertolucci, o último tango em qualquer lado, não connosco, talvez com o Travolta ou o Cage ou alguém parecido :-))))) bfds
ResponderExcluirAh os medos e as inseguranças de todos nós e as nossas viagens sobre o que pode ser. Tema recorrente do cinema e da boa literatura, como a que você faz, amigo.
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