domingo, 22 de fevereiro de 2009

zapping





zapping

Uma mulher cujo rosto e voz estão digitalmente encobertos confessa: já fez sete abortos. Melhor assim, eu acho: não gostaria desta mulher como mãe. Uma criança desapareceu e nunca mais foi vista. Sua foto mostra um rosto sorridente. Os pais, óbvio, desesperados. Entretanto, a narração descreve indícios e suspeitas. O que será pior? Perder a filha, matá-la, ser acusado injustamente de esconder seu corpo ou saber que qualquer uma das possibilidades pode ser real? Um asiático de camisa de botão xadrez mostra o coto da perna, as cicatrizes em um desenho menos coerente que o da camisa. Ele chora, não entendemos o que ele diz, não há legendas. Um crocodilo doente arranca o braço de um funcionário do zoológico. Para recuperar o membro, só tem um jeito: matam o bicho. Outra explosão, pela cor ocre de tudo, pelos homens barbados, pelas mulheres de véu, deve ser um daqueles lugares no oriente. Livros sobre o assunto estão entre os mais vendidos, eu mesmo tenho um marcador de livro, o nome do livro promovido em fontes inclinadas que lembram a escrita árabe. A foto do deserto ao fundo tem cor de pele. É bonito. Troco quando vejo um bombeiro carregando uma criança coberta de sangue e detritos. Uma menininha loira aparece então, ela tem o rosto sério, os olhos grandes, pupilas pequenas. Conversa no sofá com a Morte que parece simpática perto dela. Troco de novo. Um carro blindado avança em uma rua estreita. A face das pessoas é familiar, poderiam ser meus porteiros, meus vizinhos, gente que cruzo na igreja, no açougue, na calçada. Uma senhora faz o sinal da cruz. O homem que fez as imagens também sente medo, a câmera treme, os ângulos são vertiginosos. Parece quase um vídeo clipe. Saio de lá e vejo pessoas felizes e dançando, sorrisos perfeitos, homens lindos, mulheres maravilhosas. Há muita água e pessoas brancas: vendem alguma pasta de dente.

Chega, desligo o aparelho e me espreguiço com força. Levanto-me do sofá e saio da sala. O corredor está escuro, sinto uma presença. Acendo a luz, descubro um homem com presas. Mas não tenho medo de vampiros. Coisas tão boas assim não existem.




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(este foi - basicamente - meu conto publicado na antologia da Andross, O Livro Negro dos Vampiros, organizada por Cláudio Brites e prefaciada por Kizzy Ysatis. Posteriormente, "post"arei outros na mesma linha.)

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