domingo, 5 de outubro de 2014

espora





Assim que Galo ultrapassou a porta da sala, o Coordenador pediu-lhe que a fechasse. O empregado obedeceu e notou as persianas fechadas. Ninguém poderia vê-lo do lado de fora; se pudessem, veriam apenas as costas, a nuca com o cabelo desalinhado, a gola, as marcas de suor sobre as axilas. Em contrapartida, veriam as expressões do Coordenador, geralmente aplicadas para más-notícias. Se fosse possível escutar, ouviriam justificativas relacionadas às condições econômicas deste e de outros países, como se o mundo conspirasse para aquele contratempo, elefantes dedicados a espremer carrapatos. Portanto, nada haveria de pessoal naquela decisão, que se fosse por ele, aquilo não estaria sendo feito.

Enquanto Galo escutava as palavras, mais elas se perdiam em meio a outras, que emergiam em sua cabeça feito bolhas de ar sopradas por um canudo no fundo de um suco denso: um gesto feito quando criança, repreendido pelos adultos e repetido de forma misteriosa em seu filho: um menino nascido prematuro, a dilatação da esposa era muito maior do normal para o sexto mês: Entretanto, para quase todos os efeitos, era sadio, exceto pelo pulmão, atrofiado e vulnerável: o garoto ficou na incubadora durante semanas-meses até o processo de desenvolvimento se completar, todavia sabe o que dizem dos prematuros: adoecem mais, emburrecem mais, maior propensão à dislexia, engordam, sofrem de calvície precoce e diabetes, unha encravada e escolhem errado as mulheres, a profissão, o time.

Indiferente às digressões de Galo, o Coordenador prosseguia em seu discurso seguro e mentiroso, pois era claro a todos do escritório que Galo não regulava bem, se enrolava e se atrasava nos prazos. O RH também tende a escolher errado os funcionários, empregado hoje em dia é difícil, empregado é inimigo pago. Depois da Copa e da eleição, nuvens negras, o mundo vai acabar, serão tempos maus, portanto, empresa não deve ser boazinha, precisa de lucratividade, eficiência, fluxo de caixa, horizontes de longo prazo e portos seguros, não um navio cheio de âncoras. Mas o superior hierárquico não disse nada disso: encerrou com a parábola provavelmente incorreta do idioma chinês que usa a mesma palavra para desgraça e oportunidade. Galo agradeceu e cumprimentou o homem que anunciava a dispensa de seus serviços. Voltou para a mesa, a maioria dos colegas almoçava: os computadores dormiam, sonhavam paisagens bonitas e famílias felizes em suas telas de proteção. Sentou-se e escreveu um longo email de despedida, muito bonito, cheio de mensagens inspiradoras, cópia e cola de um modelo encontrado no Google com ligeiras adaptações de conteúdo, adaptações jamais concedidas quando o assunto era referente a si mesmo. Recolheu suas coisas, seu porta-retratos, apagou arquivos pessoais ou os transferiu para seu pendrive.

Escutou risos, vinham da sala do Coordenador, desta vez com a porta aberta.  Sua expressão agora era mais relaxada, quase estúpida, ria de algo no monitor, alguma piada fácil postada em rede social. Galo suspirou fundo e afrouxou a gravata; evitara pensar na própria família, porém era o momento de falar com a esposa. Ensaiou algumas palavras e quase as pronunciou, mas nada saiu de sua garganta. Sentiu algo errado e massageou o próprio pescoço como se fosse espremer as palavras, mas elas continuaram se recusando. Pressentiu que o incômodo em sua garganta precisava ser eliminado. Foi para o banheiro, abriu bem a boca e notou uma superfície branca e seca atrás da língua, poderia ser catarro, pus de alguma infecção não detectada, mas ao invés disso ocorreu-lhe uma história antiga de Sinbad. Com esforço, deglutiu um ovo inteiriço, branco. A este seguiram-se onze, até formar uma dúzia, depositada sobre a pia, ovos frescos recebidos em um ninho de louça. Os colegas chegaram do almoço e começaram a bater na porta, intrigados com estranhos sons de esforço, tanto poderiam ser de defecção quanto sexo: mas havia outros temores subentendidos, como o de um mal-estar súbito ou uma tentativa de suicídio.

Galo finalmente abriu a porta, ovos retidos no braço como o seu filho fizera na escolinha quando o fizeram procurar ovos de páscoa. Então, o demitido separou um ovo na testa para cada um de seus colegas, ovos que se espatifaram deixando uma gosma sobre a pele que ressecaria e ficaria como fica a porra desperdiçada na pele. O Coordenador melecado e ultrajado chamou a segurança, mas Galo já gargalhava e cacarejava descendo a escadaria de incêndio deixando o escritório mais sujo que o próprio pau, senhor de sua própria crista e espora.






Conto publicado na Revista Flaubert Imagem: Jean-Léon Gérôme (1824-1904), The Cock Fight

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